Ribeirão Preto e o Brasil: o novo centro da revolução energética verde

Construção do Centro de Excelência da Cana-de-Açúcar e Bioenergia em Ribeirão Preto | Imagem de divulgação

Por Tirso Meirelles, presidente do Sistema Faesp/Senar

A transição energética global, palavra de ordem do século 21, não é apenas uma corrida tecnológica: é uma disputa por soberania, inovação e protagonismo econômico. Enquanto países industrializados correm para substituir o carbono fóssil por vetores sustentáveis, o Brasil, paradoxalmente, já viveu — e venceu — parte dessa transição há quase 50 anos, quando lançou o Programa Nacional do Álcool (Proálcool).

Criado em 1975, em meio à crise do petróleo, o programa foi uma aposta ousada na ciência nacional, na força do setor sucroenergético e na capacidade de transformar a cana-de-açúcar em energia limpa. Era um projeto de Estado — e não apenas de governo — que inaugurou o maior programa de substituição de combustíveis fósseis do mundo. A participação do então presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp), Dr Fábio de Salles Meirelles, foi decisiva na identificação de áreas degradadas que serviriam para o desenvolvimento dos canaviais que transformaram o setor energético no país. De lá para cá, o Brasil provou ao planeta que é possível reduzir emissões e gerar riqueza sem comprometer a segurança energética ou alimentar.

Dr. Tirso Meirelles, presidente do Sistema Faesp/Senar | Foto por Gregory Grigoragi

Hoje, quando o mundo fala em descarbonização, o Brasil fala em expansão de uma matriz que já é limpa. E esse é um diferencial que poucos países podem ostentar. Segundo o Balanço Energético Nacional (EPE, 2024), 88% da eletricidade brasileira é gerada a partir de fontes renováveis, enquanto a média mundial mal ultrapassa 30%. Na matriz energética total — que inclui combustíveis e processos industriais — o Brasil alcança mais de 50% de fontes renováveis, índice que nenhum outro membro do G20 sequer se aproxima. Vale lembrar que no mundo a média de utilização de energia renovável está em 13%.

Esse protagonismo, contudo, não pode ser encarado como um ponto de chegada. É, antes, uma plataforma de partida. O país precisa transformar essa vantagem estrutural em liderança tecnológica e industrial, e o vetor mais promissor para isso continua sendo a bioenergia — um setor em que ciência, agronegócio e indústria se entrelaçam com rara sinergia.

É neste ponto que Ribeirão Preto e o interior paulista voltam ao centro do mapa. A cidade que foi berço do Proálcool e se consolidou como o coração do cinturão canavieiro brasileiro — com suas usinas, laboratórios e universidades — agora se prepara para dar um novo salto. A construção do Centro de Excelência da Cana-de-Açúcar e Bioenergia, pela Faesp e pelo Senar, é uma iniciativa que recoloca o país na vanguarda global da transição energética.

Mais do que um espaço de pesquisa, o Centro representa um modelo de governança da inovação. Um elo entre ciência e campo, entre conhecimento e aplicação. Um ambiente onde o desenvolvimento tecnológico deixa de ser tese acadêmica e se transforma em prática produtiva. É ali que novas rotas energéticas — como o etanol de segunda geração, o biogás, o biometano e o hidrogênio verde a partir da biomassa — podem sair do papel e se converter em produtos competitivos, certificados e escaláveis.

A importância disso transcende o setor sucroenergético. Trata-se de uma estratégia de posicionamento geopolítico. O mundo está definindo agora quem serão os fornecedores dos combustíveis verdes que substituirão o petróleo e o carvão nas próximas décadas. Se o Brasil conseguir industrializar suas rotas de bioenergia e consolidar uma base científica sólida, poderá liderar cadeias globais de abastecimento de energia limpa.

Ribeirão Preto tem todas as condições de ser o epicentro dessa nova revolução. Além da densidade tecnológica e da estrutura agroindustrial, abriga uma cultura produtiva enraizada na sustentabilidade. A cana, planta-símbolo da região, já é sinônimo de eficiência energética: cada hectare cultivado gera combustível, eletricidade e insumos para bioprodutos — uma tríplice alavanca de energia, renda e inovação.

Ribeirão Preto tem todas as condições de ser o epicentro dessa nova revolução. Além da densidade tecnológica e da estrutura agroindustrial, abriga uma cultura produtiva enraizada na sustentabilidade. A cana, planta-símbolo da região, já é sinônimo de eficiência energética: cada hectare cultivado gera combustível, eletricidade e insumos para bioprodutos — uma tríplice alavanca de energia, renda e inovação.

A construção do Centro de Excelência da Cana-de-Açúcar e Bioenergia, pela Faesp e pelo Senar, é uma iniciativa que recoloca o país na vanguarda global da transição energética | Divulgação

Mas é preciso reconhecer: a vantagem natural do Brasil só terá valor se for convertida em inovação estruturada. O mundo não compra etanol apenas pelo preço — compra por credenciais ambientais, certificação e rastreabilidade. É nesse contexto que o Centro de Excelência se torna estratégico. Ele pode fornecer a base científica para garantir a certificação internacional de biocombustíveis, abrir novas frentes de pesquisa sobre combustíveis de aviação sustentáveis (SAF) e formar técnicos capazes de operar as novas plantas industriais de bioenergia que já se desenham no horizonte.

Mais do que tecnologia, trata-se de uma decisão política e econômica. O país precisa decidir se quer ser mero exportador de commodities agrícolas ou protagonista na economia verde de alto valor agregado. As escolhas feitas agora definirão se o Brasil continuará sendo o “celeiro do mundo” — ou se será o laboratório energético do futuro. Há espaço para avançar na liderança da pesquisa e desenvolvimento das novas fontes renováveis de energia, reforçar a presença na segurança alimentar mundial. Além de um exemplo de sucesso, o setor agropecuário nacional é sinônimo de preservação ambiental e sustentabilidade, que se traduzem em novos mercados e mais rentabilidade para os produtores.

E há sinais promissores. O novo Centro da Faesp/Senar-SP já nasce integrado à rede nacional de formação profissional e inovação rural. Isso significa que o conhecimento produzido não ficará restrito a pesquisadores e grandes grupos: ele chegará, principalmente, ao pequeno e médio produtor, que ainda responde por boa parte da matriz produtiva do agronegócio paulista e nacional. Democratizar a inovação é o passo essencial para garantir que a transição energética seja também uma transição social.

O Proálcool provou, décadas atrás, que o Brasil é capaz de criar soluções próprias para desafios globais. Agora, o desafio é de segunda geração: transformar o legado da cana em base tecnológica para novos vetores energéticos. E essa transição exige três pilares de sustentação.

O primeiro é ciência aplicada. O país não pode abrir mão de investimentos em pesquisa e desenvolvimento. A bioenergia de segunda geração, o hidrogênio verde e os combustíveis avançados dependem de domínio técnico sobre processos de conversão, catálise e biotecnologia. Um centro de excelência, conectado a universidades e à iniciativa privada, é a ponte entre a bancada e o campo.

O segundo pilar é financiamento de longo prazo. A inovação não sobrevive a políticas sazonais. É preciso linhas de crédito estáveis, incentivos fiscais inteligentes e mecanismos de atração de capital privado que viabilizem plantas-piloto e projetos de demonstração. Sem isso, a inovação morre no laboratório.

O terceiro pilar é governança institucional. O Brasil precisa consolidar uma política de Estado para a bioenergia, com metas de longo prazo e instrumentos de certificação que garantam previsibilidade. Assim como o Proálcool foi um projeto nacional, o novo ciclo energético deve ser tratado como política de desenvolvimento — e não apenas como resposta conjuntural às crises do petróleo ou às pressões internacionais por descarbonização.

A transição energética já não é um discurso: é uma realidade econômica que mobiliza trilhões de dólares em investimentos. E o Brasil tem o que poucos têm — terra, sol, água, ciência e gente capacitada. O desafio é unir esses elementos num projeto nacional de energia limpa, capaz de gerar valor interno e influência externa.

É por isso que o Centro de Excelência em Ribeirão Preto é muito mais que uma obra: é uma declaração de propósito. Ele sinaliza que o setor agropecuário está disposto a contribuir para que o país lidere, e não apenas siga uma tendência. Que a transição energética não será uma imposição estrangeira, mas uma vocação nacional. Que a bioenergia não é um capítulo do passado, e sim o fio condutor do futuro.

Se o Brasil souber alinhar políticas públicas, inovação e educação técnica, poderá transformar sua vocação agrícola em plataforma tecnológica de exportação de energia limpa. Poderá produzir não apenas alimentos, mas também soluções climáticas. Poderá ser, enfim, a “Arábia Saudita dos biocombustíveis”, com independência energética e credenciais ambientais inigualáveis.

Mas para isso é preciso coragem — a mesma coragem que Ribeirão Preto teve nos anos 1970, quando o Proálcool parecia uma utopia. Hoje, a utopia é outra: substituir o carbono fóssil por uma economia verde e justa. O caminho passa, novamente, pelo interior de São Paulo, onde a cana continua sendo sinônimo de energia — e onde a ciência, mais uma vez, se transforma em motor do progresso.

O Centro de Excelência da Cana-de-Açúcar e Bioenergia, construído pela Faesp e pelo Senar, é um projeto que carrega em si a memória do passado e a promessa do futuro. Ele simboliza a maturidade do Brasil em compreender que a transição energética não depende apenas de painéis solares ou turbinas eólicas, mas também da inteligência acumulada em décadas de inovação agrícola. O mundo busca respostas para o carbono. O Brasil já tem uma — e está sendo construída em Ribeirão Preto.